terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Gerald’s game ou Jogo Perigoso.


Adaptação do conto de King para a telinha pela Netflix em 2017 causou um certo estranhamento aos amantes do mestre do horror, e não por motivos fúteis. Não é de hoje que viramos a cara pra essas adaptações e a Netflix tem focado em historias do King (que é rei até no nome), depois de "O Nevoeiro" todo mundo meio que broxou e se não broxou é por que não assistiu a triste adaptação do conto pra serie (que aparentemente não voltará para uma segunda temporada).

Contudo vamos ao que interessa: Gerald’s Game ou Jogo Perigoso
O livro original foi publicado em 1992, mas, no Brasil ele só chegou no ano de 2000 pela editora Objetiva.  E nessa adaptação a Netflix foi bastante fiel e nos deu um filme cheio de referencias a outros contos do mestre.

Gerald e Jessie Burlingame (Bruce Grenwood e Carla Gugino) são um casal que está passando por uma turbulência no casamento e por isso decidem se distanciar de tudo e de todos na sua casa de campo durante o fim de semana. Para Gerald isso não é apenas um fim de semana para salvar seu casamento e ele já tem tudo planejado.  Gerald é um homem mais velho, um advogado bem sucedido, um homem educado, mas, é misógino, falocêntrico e um homem cheio de fetiches.  Jessie é a esposa dedicada que aprendeu a agradar o marido seja lá no que for preciso. E para salvar seu casamento ela está ainda mais disposta e não pensa muito quando o marido propõe um joguinho sexual.


Gerald algema a esposa na cama (com algemas de verdade) e põe a chave em cima da pia do banheiro enquanto pega um copo d’água pra tomar um remédio.  É ai onde o jogo começa a dar muito errado. Jessie se vê algemada na cama, sem comida ou água, sem bateria no celular que não está perto, sem poder pedir ajuda por vários motivos, os vizinhos mais próximos não ouviram seus gritos e mesmo assim sabemos que eles não estão em casa, os empregados estão de folga a pedido de Gerald e ela teme pela sua segurança caso seja encontrada algemada a cama e vulnerável  por um estranho, mas, nada disso se compara ao medo que ela sente do cachorro faminto que está agora dentro da casa. Não está sendo fácil para Jessie, e tudo vai piorar, no meio do desespero a mente dela começa a projetar figuras que hora ajudam a resolver problemas, mas, também instigam seus piores pesadelos e libertam seus maiores medos.  É um filme claustrofóbico. É bastante sufocante em certos momentos e difícil de assistir em outros.

(SPOILER ALERT) (SPOILER ALERT) (SPOILER ALERT) (SPOILER ALERT) (SPOILER ALERT) (SPOILER ALERT)

O filme tem um lugar mais sombrio do que imaginamos quando começamos a aprender mais sobre o passado da nossa prisioneira solitária.
Jessie foi exposta a um pai misógino ainda muito jovem, que aos doze anos abusou dela durante um eclipse e depois continuou com isso a fazendo acreditar que a culpa era dela, e que sua mãe ficaria desapontada caso ela contasse alguma coisa. Por medo de levar a culpa (claro por que a culpa é sempre da vitima) e medo de que ele fizesse o mesmo com sua irmãzinha, Jessie guarda o segredo do pai, algo que ela nunca contou nem mesmo ao seu marido, que mesmo sem imaginar dos traumas da esposa, sadicamente começa a se impor chamando a si próprio de “papai” e desencadeia essas lembranças sombrias deixando-a assustada como da primeira vez.
As referencias das quais falamos aparecem ao longo do filme, mas, nem sempre é possível identificá-las, se você não leu os livros. Nosso cãozinho necrófilo é sem sobra de duvidas uma referencia ao Cujo (Livro de 1981 e Adaptado para o cinema em 1983) e Temos  The Space Cowboy que aparece primeiro como a manifestação do medo de Jessie, logo em seguida em momentos diferentes vemos a representação física dele, mas, só durante a leitura da carta que ela escreve a uma das vozes na sua mente que acaba por ser ela mesma quando criança, fica explicado quem  é Gilbert (Crypt Creeper) que mais tarde foi preso quando deixou de violar cadáveres e tentou cortar a orelha de um homem em seu quarto em quanto ele dormia. E que talvez por violar apenas homes, Gilbert tenha poupado lhe a vida. Mais tarde quando vai ao julgamento, Gilbert repete as palavras dela e isso nos dá a certeza de que ele esteve sim naquele quarto durante aquelas duas noites.

Num livro seguinte (Eclipse Total - Dolores Claiborne) vamos ouvir sobre Dolores, que tem uma conexão mental com Jessie e que descobrimos que esteve lá durante o assedio durante o eclipse e durante a agressão do marido e as algemas nas noites que passou naquele quarto.  A priori esses que são agora dois livros seriam apenas um volume chamado: "In the Path of the Eclipse" ("Na trajetória do eclipse"). E que o prefacio já explicava essa conexão entre as duas personagens.



segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

MINDHUNTER

MINDHUNTER


Uns meses atrás eu escrevi pro Porre de Livros os 5 motivos pra você assistir Mindhunter e são esses aqui: Clica aqui e confere

            A queridinha dos seriemaníacos que amam um bom serial killer em 2017 foi sem sombra de duvidas Mindhunter. A serie não conta a historia de um serial killer, mas, mostra como se deu a implantação da nossa amada divisão de ciências comportamentais no FBI.
Dois agentes e um ambicioso plano: percorrer as penitenciarias de segurança máxima entrevistando os maiores nomes do hall da fama dos assassinatos em serie dos estados unidos da America. 
Em 1977. Holden Ford (Jonathan Gross) e Bill Tench (Hold McCallany), pretendem desenvolver a primeira pesquisa nos EUA sobre a mente dos assassinos e estupradores em serie. A má noticia? É que eles não tem que conseguir apenas a confiança dos criminosos que pretendem entrevistar, mas, tem que convencer a todos de que esse é o caminho para prever o próximo passo de um assassino. A divisão ganha um reforço importante com a chegada da Psicóloga Wendy Carr (Anna Torv) que traz não só o conhecimento teórico dos distúrbios mentais (por assim dizer) desses assassinos, mas, com ela chega uma ajuda financeira fundamental para expansão da divisão. E entre uma coisa e outra esses mesmos agentes tem que resolver seus próprios problemas pessoais entre, relacionamentos, família, carreira e saúde eles não conseguem separar o trabalho do pessoal e em certos momentos ao confundirem uma coisa com a outra surge mais um problema que eles precisam resolver rápido.
O que não passa em branco são as atuações de alguns atores nessa maravilha de produção.
Cameron Britton pelo maravilhoso assassino Ed Kemper é uma delas, (o próprio Kemper aplaudiria rsrs). Mas, Groff e Torv também tem sua parcela de culpa nesse sucesso, parece que eles nasceram pra interpretar esses personagens. A serie foi produzida por ninguém mais ninguém menos que David Finch, então é um dos motivos pra ver se você curtiu “O clube da luta”, “Sevem” ou ate “A Rede Social”.

A serie é baseada no livro Mind Hunter: Inside the FBI’s Elite Serial Crime Unit. Escrito por John E. Douglas e Mark Olshaker. E mostra alguns dos casos investigados por Douglas.



E esses alguns dos personagens baseados em pessoas reais:

Jonayhan Groff como Holden Ford, um agente especial da Unidade da Ciência do Comportamento do FBI; basado em John E. Douglas

Holt McCallany como Bill Tench, um agente especial da Unidade da Ciência do Comportamento do FBI; basado em Robert K. Resseler 

Anna Torv como a Dra. Wendy Carr, uma psicóloga; baseada na Dra. Ann Wolbert Burgess

Cotter Smith como Shepard, chefe de unidade da Academia Nacional de Treinamento do FBI


Os assassinos também são bem reais e alguns são:

Cameron Britton como Edmund Kemper

Happy Anderson como Jerry Brudos

Jack Erdie como Richard Speck

Joseph Cross como Benjamin Barnwright

Sam Strike com Monte Ralph Rissell

Adam Zastrow como Darrell Gene Denvier

Com esse time ai Mindhunter foi serie pra ninguém botar defeito fechando a primeira temporada com chave de ouro e já renovada para a segunda temporada. Que venha logo! E pra quem ficou com saudade da serie pode conferir o MANHUNT: Unabomber que tem uma pegada parecida e um elenco maravigold too!


La Mante - A Louva-Deus

Uma serie de assassinatos coloca a policia de Paris em alerta, um criminoso vem recriando os assassinatos de uma famosa serial killer dos anos noventa e para pega-lo a policia vai precisar da ajuda de Jeanne DeBer (Carole Bouquete) a assassina original que matava homens culpados de abuso e violência domestica. Mas Jeanne tem algumas exigências, sair da prisão onde está há 25 anos e trabalhar seu filho o policial ate então infiltrado Demien (Fred Testot).

A produção francesa trás uma belíssima surpresa e uma teia bastante inquietante e nada condescendente. Apesar de mostrar os monstros dentro do armário de Jeanne e de ficar claro que seus alvos foram homens ruins para suas famílias, o que vemos é um lado frio de alguém que sentia prazer em tirar a vida de outro ser humano e seu prazer em saber das vitimas de seu imitador.
Em contra partida seu filho sofre com os traumas da infância e enquanto corre para pegar um assassino ele tenta consertar seu casamento que está indo por um caminho sombrio graças as suas mentiras e omissões.

 Os amantes das series policiais/assassinatos com certeza perceberão rápido que tem muito do nosso amado Hannibal, a pesar de que eu senti um prazer imenso em ter uma assassina tão fria e calculista numa posição tão maravilhosa caçando homens que ela julgava ser um “câncer para a sociedade”.
Já podemos nos render as produções que estão vindo de outros países, demos uma respirada com a intensa “DARK” que é uma produção alemã (que foi renovada pra segunda temporada) e “A casa de papel” que é uma produção Espanhola para a Antena 3 (não é uma produção da netflix), agora temos uma serie também curta (com 6 eps) que veio da França, mas, que não deixou a desejar e não deve nada as produções norte-americanas.


La Mante traz personagens complexos, grandes nomes do cinema francês e um desfecho
surpreendente pra uma trama muito bem construída e amarrada, obviamente, alguns de nós vão travar quando perceberem os recursos com os quais a policia parisiense trabalha e a diferença das investigações norte-americanas que estamos acostumados. Pra quem gosta dos detalhes sordidos a serie vem cheia de decapitação, desmembramentos e torturas que são mostrados sem censura bem como trata de estupro, incesto, violência e abuso infantil tudo sendo explorado sem filtros e sem nuances cor de rosa. Há quem diga que a motivação do imitador é fraca (não achei), mas, acho que a serie trata muito mais da reaproximação entre mãe e filho do que sobre aquilo que os reaproximou. Não se enganem, vale muito a pena assistir essa produção original da Netflix francesa que está disponível desde o final do ano passado.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

A Galinha Degolada.

Horácio Quiroga (1879 – 1937)

Escritor uruguaio, que passou a maior parte da vida na região de Misiones - Argentina, lugar que inspirou suas principais obras, entre elas o livro Contos de Loucura e de Morte, onde foi publicado
A vida cheia de tragédias – a morte do pai aos 4 anos de idade, o suicídio do padrasto, a morte acidental do melhor amigo com um tiro disparado pelo próprio Quiroga, o suicídio da esposa e dos três filhos – é refletida em sua obra que mistura eventos fantásticos e macabros com temas relacionados ao cotidiano de cidades pacatas do interior, como são até hoje os municípios de Misiones. 


A Galinha Degolada - Horácio Quiroga

O dia todo, sentados no banco do pátio, ficavam os quatro filhos idiotas do casal Mazzini-Ferraz. Tinham a língua entre os lábios, os olhos estúpidos, e volviam a cabeça com a boca aberta.
O pátio era de terra, cercado a oeste por um muro de tijolos. O banco ficava paralelo ao muro, a cinco metros, e ali os quatro se mantinham imóveis, com os olhos fixos nos tijolos. O sol se ocultava por trás do muro e, ao declinar, os idiotas faziam a festa. A luz ofuscante a princípio chamava-lhes a atenção, e, pouco a pouco, os seus olhos se animavam. Riam, ao final, estrepitosamente, congestionados pela mesma hilaridade ansiosa, contemplando o sol com bestial alegria, como se ele fosse comida.

Outras vezes, perfilados no banco, zumbiam horas inteiras, imitando o bonde elétrico. Os ruídos fortes sacudiam-nos em sua inércia, e, então, eles corriam, mordendo a língua e mungindo, ao redor do pátio. Mas quase sempre estavam apagados na sombria letargia do idiotismo, e passavam o dia todo sentados no banco, com as pernas suspensas e quietas, empapando as calças com a saliva pegajosa.

O maior tinha doze anos e o menor, oito. Em todo o seu aspecto sujo e desvalido notava-se a absoluta falta do mínimo que fosse cuidado maternal.

Todavia, esses quatro idiotas haviam sido, um dia, o encanto dos pais. Aos três meses de casados, Mazzini e Berta orientaram seu íntimo amor de marido e mulher, e mulher e marido, num projeto especialmente vital: um filho. Que melhor auspício para dois apaixonados que essa honrada consagração de seu carinho, libertado do vil egoísmo de um mútuo amor sem objetivo algum e, o que é pior para o amor mesmo, sem esperanças de possível renovação?

Era o que sentiam Mazzini e Berta quando o filho chegou, após quatorze meses de casados, acreditando que a felicidade do casal estava cumprida. Era uma criatura bela e radiante até um ano e meio. Mas, no vigésimo segundo mês, numa certa noite, convulsões terríveis abalaram o menino e, na manhã seguinte, ele já não mais reconhecia os pais. O médico o examinou com essa atenção profissional de quem está visivelmente buscando as causas do mal nas enfermidades dos pais.
Depois de alguns dias, os membros paralisados recobraram o movimento. Mas a inteligência, a alma e até mesmo o instinto haviam-no abandonado para sempre. Ficara completamente idiota, babão, pendente, morto sobre os joelhos da mãe.

― Filho, meu filho querido! ― Ela soluçava sobre aquela espantosa ruína de seu primogênito.
O pai, desolado, acompanhou o médico à saída de casa.

-― Ao senhor posso dizer: creio que é um caso perdido. Poderá melhorar, educar-se em tudo que a idiotia permita. Mas nada além disso.

– Sim, sim! ― assentia Mazzini. – Mas, diga-me: o senhor crê que o caso é hereditário? Que…

– Quanto à herança paterna, já lhe disse o que achava quando vi seu filho. Quanto à da mãe, tem ela um pulmão que não respira direito. Não vejo nada mais além disso, mas há uma respiração um tanto ríspida. Faça com que ela seja examinada detidamente.

Com a alma destroçada pelo remorso, Mazzini redobrou o amor ao filho, o pequeno idiota que pagava pelos excessos do avô. Ainda teve que consolar, amparar sem trégua Berta, profundamente ferida por aquele fracasso de sua jovem maternidade.

Como é natural, o casal pôs todo o seu amor na esperança de outro filho. Ele nasceu, e a saúde e limpidez do seu sorriso reacenderam o futuro extinto. Mas, aos dezoito meses de idade, as mesmas convulsões do primogênito se repetiram, e, no dia seguinte, o segundo filho despertou idiota.

Desta feita, os pais caíram em profundo desespero. Ora, seu sangue e seu amor estavam amaldiçoados! Seu amor, sobretudo! Ele contava com vinte e oito anos; ela, com vinte e dois. Mas toda esta apaixonada ternura não lograra criar um átomo de vida normal. E já não mais pediam beleza e inteligência, como sucedera no caso do primogênito, mas apenas um filho como todos!
Do novo desastre brotaram novas labaredas do amor dolorido, uma nova ânsia de redimir de uma vez para sempre a santidade de sua ternura. Vierem gêmeos e, ponto por ponto, repetiu-se o processo dos maiores.

Mas, acima de sua imensa amargura, restava a Mazzini e Berta uma grande compaixão por seus quatro filhos. Tiveram que arrancar, do limbo da mais funda animalidade, não suas almas, mas próprio o instinto abolido. Eles não sabiam deglutir, mudar de lugar, nem mesmo sentar-se.

Aprenderam, finalmente, a caminhar, mas em tudo esbarravam, por não darem conta dos obstáculos. Quando eram banhados, mugiam até a face injetar-se de sangue. Animavam-se tão somente quando comiam, viam cores brilhantes ou ouviam trovões. Então riam, deitando fora a língua e rios de baba, radiantes de frenesi bestial. Tinham, em compensação, certa faculdade imitativa; mas não se pôde obter nada além disso.

Com os gêmeos parecia concluída a aterradora descendência. Mas, passados três anos, desejaram ardentemente ter outro filho, confiando em que o longo tempo transcorrido houvesse aplacado a fatalidade.

Mas não eram satisfeitas as suas esperanças. E, nesse ardente desejo, que se exasperava em razão de sua infrutuosidade, azedaram-se. Até esse momento, cada qual havia tomado sobre si a parte que lhe correspondia na miséria de seus filhos; mas a desesperança de redenção ante as quatro bestas, que haviam nascido deles, deu vazão a essa imperiosa necessidade de culpar os outros, que é patrimônio específico de corações inferiores.

Iniciaram com a mudança de pronome: seus filhos. E como, sob o insulto, havia a insídia, a atmosfera se carregava.

– Acho – disse-lhe uma noite Mazzini, que acabava de entrar e lavava as mãos -, você poderia manter os garotos mais limpos.

Berta continuou a ler, como se não tivesse ouvido.

― É a primeira vez ― replicou um pouco depois ― que o vejo preocupado com estado de seus filhos.

Mazzini voltou ligeiramente a face para ela, com um sorriso forçado.

– De nossos filhos, parece-me…

– Bem, de nossos filhos. Assim é melhor? – Ela ergueu os olhos.

Desta feita, Mazzini expressou-se claramente:

– Acho que você não dizer que a culpa é minha, vai?

– Ah, não! – Berta sorriu, muito pálida. – Mas tampouco é minha, suponho! Só faltava esta! – murmurou.

– Só faltava o quê?

– Se alguém tem culpa, não sou eu, entenda bem! Era isto o que eu queria lhe dizer!

O marido a olhou por um momento, com brutal desejo de insultá-la.

– Deixe para lá! – articulou, secando finalmente as mãos.

– Como queira! Mas se você estava querendo dizer…

– Berta!

– Como queira!

Este foi o primeiro choque e se sucederam outros. Mas nas inevitáveis reconciliações, suas almas se uniam com arrebatamento redobrado e loucura por outro filho.
Nasceu, assim, uma menina. Viveram dois anos com a angústia à flor da alma, esperando sempre outro desastre. Nada aconteceu, todavia, e os pais puseram nela toda a sua complacência, que a menina levava aos mais extremos limites do mimo e à malcriação.

Se ultimamente Berta voltara a cuidar de seus filhos, a partir do nascimento de Bertita esqueceu-se quase totalmente dos outros. Sua tão só lembrança a horrorizava, como se eles fossem algo atroz que a obrigaram a cometer. Ocorria o mesmo, mas em menor grau, com Mazzini. Mas nem por isso a paz havia chegado às suas almas. O mínimo mal-estar da filha desencadeava, com o terror de perdê-la, os rancores de sua prole podre. Haviam acumulado fel tempo demais para que o vaso não ficasse distendido e, ao menor contato, o veneno era lançado fora. Desde a primeira altercação envenenada, perderam o recíproco respeito. E, se há algo a que o homem se deixa arrastar, com cruel prazer, tal consiste, quando já se deu o primeiro impulso, em humilhar completamente uma pessoa.

Antes, eles se continham pela mútua falta de êxito; mas agora que este havia chegado, cada qual, atribuindo-o a si mesmo, sentia maior a infâmia das quatro aberrações que o outro o havia forçado a criar.

Com tais sentimentos, não havia para os quatro filhos maiores afetos possíveis. A empregada os vestia, dava-lhes de comer e punha-os na cama com visível brutalidade. Quase nunca lhes dava banho. Passavam a maior parte do dia sentados de frente para o muro, privados da mais remota carícia.

Assim, Bertita completou quatro anos e, nesta noite, como resultado das guloseimas – aos pais era absolutamente impossível negá-las -, a criancinha teve alguns calafrios e febre. E o temor de vê-la morrer, ou ficar idiota, tornou a reabrir a eterna chaga.

Fazia três horas que não se falavam e o motivo foi, como quase sempre, os fortes passos de Mazzini.

– Meu Deus! Você não pode caminhar mais levemente? Quantas vezes…

– Bem, é que me esqueço. Acabou! Não o faço de propósito.

Ela sorriu, desdenhosa:

– Não acredito tanto em você!

– Nem eu, jamais, acreditei tanto em você… tuberculosinha!

– O quê? O que disse?

– Nada!

– Sim, ouvi algo de você! Veja: não sei o que disse, mas lhe juro que prefiro qualquer coisa a ter um pai como o que você teve!

Mazzini empalideceu.

– Afinal! – murmurou com os dentes cerrados. – Afinal, víbora, você disse o que queria dizer!

– Sim, víbora, sim! Mas tenho pais sadios, escuta-me? Sadios! Meu pai não morreu em delírio. Eu poderia ter filhos como os de todo mundo! Esses são seus filhos; os quatro, seus!

Mazzini igualmente explodiu:

― Víbora tuberculosa! Isto é o que eu disse, o que quero lhe dizer. Pergunte, pergunte ao médico quem tem a maior culpa pela meningite de seus filhos: meu pai ou teu pulmão perfurado, víbora!

Continuaram cada vez com maior violência, até que um gemido de Bertita selou instantaneamente as suas bocas. À uma da manhã, a ligeira indigestão havia desaparecido, e, como ocorre fatalmente com todos os casais de jovens que se amaram intensamente pelo menos uma vez, a reconciliação chegou, tão mais efusiva quanto lacerantes foram os insultos.

Amanheceu um esplêndido dia e, ao se levantar, Berta cuspiu sangue. As emoções e a noite mal passada tinham, sem dúvida, grande culpa. Mazzini a reteve abraçada por um longo tempo, e ela chorou desesperadamente, mas sem que nenhum deles se atrevesse a dizer uma palavra.

Às dez horas, decidiram-se sair, depois do almoço. Como o tempo era curto, ordenaram à empregada que matasse uma galinha.

O dia radiante havia tirado os idiotas do banco. Assim, no momento em que a empregada degolava a galinha na cozinha, dessangrando-a lentamente – Berta havia aprendido com sua mãe este bom modo de bem conservar a frescura da carne -, acreditou sentir algo como uma respiração atrás de si. Voltou-se e viu os quatro idiotas, com os ombros colados um no outro, olhando, estupefatos, a operação… Vermelho… vermelho…

– Senhora! Os garotos estão aqui, na cozinha.

Berta chegou; não queria que eles jamais pisassem ali. E, nem mesmo nestas horas de pleno perdão, esquecimento e felicidade reconquistada, podia evitar tão horrível visão. Porque, naturalmente, quanto mais intensos eram os arrebatamentos de amor ao marido e à filha, mais irritado era o seu humor com os monstros.

– Que saiam, Maria! Ponha-os para fora! Ponha-os para fora, digo-lhe!

As pobres quatro bestas, sacudidas, brutalmente empurradas, voltaram para o banco.
Depois de almoçar, saíram todos. A empregada foi a Buenos Aires e o casal a um passeio pelas quintas. Ao cair do sol, voltaram; mas Berta quis cumprimentar por um momento as vizinhas da frente. A filha logo escapou para casa.

Entrementes, os idiotas não haviam deixado o banco durante o dia todo. O sol já havia transposto o muro, começava a afundar-se, e eles continuavam olhando os tijolos, mais inertes do que nunca.

De repente, algo se interpôs entre seu olhar e o muro. A irmã, enfadada de cinco horas de vigilância, queria agir por conta própria. Detida ao pé do muro, olhava para o alto, pensativa. Queria subir, não havia dúvida. Por fim, decidiu-se por uma de cadeira sem assento, mas não era suficiente. Recorreu, então, a uma lata de querosene, e seu instinto topográfico a orientou a aprumá-la na vertical, com o que triunfou.

Os quatro irmãos, com olhar indiferente, viram como a irmã conseguia pacientemente dominar o equilíbrio, e como, nas pontas dos pés, apoiava a garganta na plataforma do muro, entre as mãozinhas retesadas. Viram-na olhar para todos os lados, e buscar apoio com o pé, para subir ainda mais.

Mas o olhar dos idiotas havia-se animado; uma mesma luz insistente fixava-se em suas pupilas. Não afastavam os olhos da irmã, enquanto uma crescente sensação de gula bestial ia transformando cada uma das linhas de seus rostos. Lentamente avançaram até o muro. A pequena, tendo
conseguido fixar um pé, já ia montar a cavalo e, seguramente, passar ao outro lado, mas sentiu-se agarrada pela perna. Debaixo dela, os oito olhos cravados nos seus lhe deram medo.

– Solte-me! Deixe-me! – gritou, sacudindo a perna. Mas foi puxada.

– Mamãe! Ai, mamãe! Mamãe, papai! – chorou imperiosamente. Ainda tentou agarrar-se à borda do muro, mas se sentiu arrancada e caiu.

– Mamãe, ai! Ma… – Não pôde gritar mais. Um deles apertou-lhe o pescoço, afastando os cachos como se fossem penas, e os outros a arrastaram por uma perna até a cozinha, onde nessa manhã haviam dessangrado a galinha, bem segura, arrancando-lhe a vida segundo por segundo.

Mazzini, na casa da frente, acreditou ter ouvido a foz da filha.

– Acho que ela lhe chama – disse a Berta.

Prestaram atenção, inquietos, mas não ouviram mais nada. Contudo, um momento depois, se despediram, e, enquanto Berta ia guardar o seu chapéu, Mazzini avançou ao pátio.

– Bertita!

Ninguém respondeu.

– Bertita – elevou mais a voz, já alterada.

E o silêncio foi tão fúnebre para o seu coração sempre aterrorizado que as costas regelaram com um horrível pressentimento.

– Minha filha! Minha filha!

Correu, já desesperado, aos fundos. Mas, ao passar em frente à cozinha, viu no chão um mar de sangue. Empurrou violentamente a porta encostada e lançou um grito de horror.

Berta, que já de sua vez já correra, ao ouvir o angustiante chamado do pai, escutou o grito e respondeu com outro. Mas, ao precipitar-se na cozinha, Mazzini, lívido como a morte, se interpôs, detendo-a.

– Não entre! Não entre!

Berta chegou a ver o chão inundado de sangue. Só pôde erguer os braços à cabeça e afunda-se no marido com um suspiro rouco.